Definitivamente,
não existem ideologias perfeitas. Todas têm suas virtudes e vicissitudes. Cada
qual tem seu altar e seu sacrifício. O comunismo, por exemplo, sacrifica a
liberdade de seus cidadãos no altar da justiça social. O capitalismo faz o
inverso, sacrifica a justiça social no altar da liberdade.
Ora, se
não há ideologias perfeitas, o que nos dá o direito de sacralizá-las? Não
podemos diluir a mensagem do Evangelho, transformando-o num discurso
ideológico. Ainda que cada uma delas tenha um ponto ou mais que coincidam com a
proposta do Evangelho. Diluir uma gota de Evangelho num balde de ideologia
acaba por corromper completamente seu conteúdo e subversividade originais.
Deus não
é de esquerda, nem de direita. Se o Evangelho promove a justiça social, também
não prescinde da liberdade individual.
Quando
sacralizamos uma ideologia, geralmente, demonizamos as demais. Foi o que
aconteceu com o comunismo a partir do golpe militar em 1964. Pregadores fizeram
vista grossa às atrocidades cometidas pelo governo militar, enquanto
identificavam o comunismo com o próprio diabo. Houve quem enxergasse um viés
político-ideológico até na passagem em que Jesus descreve o juízo final, quando
a humanidade será dividida em dois grupos. Os da esquerda, destinados à
condenação, seriam os comunistas, enquanto que os da direita, destinados à vida
eterna, seriam as nações que adotassem a ideologia importada dos EUA, a saber,
o capitalismo. Igualmente, dos dois ladrões crucificados com Jesus, somente o
da direita foi salvo.
Qualquer
pregador que ousasse questionar a ditadura militar, corria o risco de ser
preso, acusado de subversão. Há quem diga que muitos desapareceram...
Não
devemos nutrir uma visão romântica de nenhuma ideologia. Em nome de todas elas,
atrocidades foram cometidas.
Vamos
focar as duas principais ideologias vigentes neste novo século, a saber, o
comunismo (que resiste bravamente na China e em Cuba), e o capitalismo.
O
comunismo, em sua essência, defende que os bens de uma sociedade deveriam ser
partilhados igualmente entre todos os seus cidadãos. Isso parece coincidir com
a proposta do Evangelho. Eu disse, parece. Teria o Estado o direito de
apropriar-se de bens privados?
Temos um
exemplo disso na Bíblia, quando um rei malévolo desejou acampar a vinha de um
cidadão de Israel. Acabe conspirou contra Nabote, a fim de tomar-lhe a
propriedade. É óbvio que Deus jamais apoiaria tal atitude. O mandamento que diz
que não devemos cobiçar o bem alheio, bem como o mandamento que nos proíbe o
roubo, são uma indicação de que a vontade de Deus é que a propriedade privada
seja respeitada. Também encontramos nas Escrituras leis que regulam a
hereditariedade de bens (Pv.13:22).
Entretanto
a Bíblia incentiva a partilha de bens, desde que seja voluntária, fruto de uma
consciência grata e generosa. Foi isso que aconteceu na igreja primitiva. O que
vemos ali está longe de ser uma amostra grátis do que seria uma sociedade
comunista. Em vez disso, trata-se de uma demonstração de como funciona uma
sociedade erigida ao redor do Trono da Graça. Trata-se, portanto, de reinismo,
em vez de comunismo. A partilha jamais foi compulsória, mas provinha do fato de
todos terem um só coração (At.4:32). Não havia imposição por parte dos
apóstolos. Tudo era voluntário. Portanto, diferente do que propõe regimes
comunistas, a partilha dos bens deve ser voluntária, tanto quanto o celibato,
equivocadamente exigido pelo Vaticano aos seus sacerdotes.
Chamamos
“reinismo” a ideologia que deve reger a sociedade construída a partir de uma
cosmovisão do reino de Deus. Reinismo, portanto, deveria ser o modus vivendis de
toda comunidade legitimamente cristã.
De acordo
com Paulo, o cidadão do Reino deve trabalhar, “fazendo com as mãos o que é bom,
para que tenha o que repartir com o que tiver necessidade” (Ef. 4:28). Bem
diferente da proposta do capitalismo que é fazer do trabalho um meio para
adquirir e concentrar bens, no reinismo somos instados a trabalhar para ter o
que repartir. Assim como o comunismo, o reinismo também valoriza o trabalho
muito mais que o capital. Porém, cada qual deve desfrutar do resultado de seu
próprio trabalho, e não usufruir ociosamente do trabalha alheio. Somente
aqueles que estiverem impossibilitados de trabalhar, ou que houver sido vítimas
de alguma injustiça, devem desfrutar da partilha comunitária. “Se alguém não
quiser trabalhar, que também não coma”, sentencia Paulo (2 Ts.3:10-12).
Um Estado
regido pela ideologia comunista tende a ser totalitário, intrometendo-se em
questões que deveriam ser mantidas na esfera privada.
Qual
seria o papel do Estado de acordo com a Bíblia?
“Toda
alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não
venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste
à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si
mesmos a condenação. Porque os magistrados não são motivo de temor para os que
fazem o bem, mas para os que fazem o mal. Queres tu, pois, não temer a
autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; porquanto ela é ministro de Deus
para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada;
porque é ministro de Deus, e vingador em ira contra aquele que pratica o mal.
Pelo que é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa da ira,
mas também por causa da consciência. Por esta razão também pagais tributo;
porque são ministros de Deus, para atenderem a isso mesmo.” Romanos 13:1-6
De acordo
com este texto, o Estado recebeu de Deus autoridade para punir os malfeitores,
ao mesmo tempo em que incentiva toda e qualquer boa iniciativa. Leis civis são
implementadas para regulamentar a vida social. Quando estas leis são
transgredidas, o Estado tem o direito de punir os transgressores. Mas não pára
aí. O Estado também tem a obrigação de “louvar” quem faz o bem, o que pode ser
interpretado como incentivar qualquer iniciativa que vise o bem comum. Isso
pode incluir incentivos fiscais, como aqueles dados à cultura. Se o Estado
extrapola sua esfera de atuação, seus cidadãos têm o direito de resisti-lo,
denunciando-o e buscando sua reforma. O Estado deve servir como um facilitador
de boas obras, oferecendo à sua população meios para tal. Desde infraestrutura
para escoamento da produção, passando por incentivos fiscais, segurança,
educação, saúde, saneamento básico, etc.
Já no
Liberalismo/capitalismo, valoriza-se o capital em detrimento do trabalho. O consumo
é incentivado a todo custo, a fim de manter a máquina a pleno vapor. Trata-se,
portanto, de um sistema retroalimentado. O consumo estimula a produção, que por
sua vez, promove a abertura de postos de trabalho. Segundo seus defensores, o
resultado desta equação é a prosperidade da sociedade como um todo. Tudo parece
muito bonito, até que nos deparamos com as palavras de Jesus: “Acautelai-vos e
guardai-vos de toda espécie de cobiça; porque a vida do homem não consiste na
abundância das coisas que possui.” (Lc. 12:15).
Como,
então, poderíamos endossar o espírito consumista que justifica a ideologia
capitalista? Um sistema erigido sobre esta ideologia só poderia está fadado a
ruir.
No
capitalismo a concentração de renda também é valorizada, em franca dissonância
com os princípios da Palavra de Deus.
“Ai dos
que ajuntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo, até que não haja
mais lugar, de modo que habitem sós no meio da terra!”
Isaías
5:8
A justiça
do reino de Deus nos impele à distribuição de renda, e não à sua concentração.
Cartéis, monopólios, oligarquias, são alguns dos efeitos colaterais deste
sistema capaz de corromper os valores essenciais da vida em nome do ganho.
O
capitalismo também promove a exploração do trabalhador.
Apesar do
discurso afirmar que todos saem ganhando, não é isso que constatamos. Quem lucra,
nunca se dá por satisfeito. Os detentores dos meios de produção, bem como os
banqueiros e donos dos veículos de comunicação querem sempre mais, e mais, e
mais.. E ao mesmo tempo, reduzir gastos, o que pode significar redução de
salários, substituição de mão-de-obra humana por máquinas, etc. Investe-se em
publicidade e lobby político, ao passo que reduz-se o gasto com aqueles que
mantém a máquina, os empregados. Tudo em nome da eficiência e da otimização dos
lucros. Não é à toa que grandes empresas de países ricos têm se mudado para
países do terceiro mundo, por saberem que lá pagarão salários menores a seus
empregados. O preço pago a médio e longo prazo será incalculável. E já começou
a ser pago. Vide o altíssimo índice de desemprego nesses países.
Se por um
lado o capitalismo promove competitividade, fazendo com que serviços e bens de
consumo sejam aprimorados, por outro lado, atravancam o desenvolvimento.
Dificilmente empresas petrolíferas apoiarão iniciativas que desenvolvam
veículos movidos à água, por exemplo. A menos que descubram uma maneira de
tirar proveito disso. Muita coisa já foi inventada, patenteada, porém, jamais
chegou às mãos do consumidor, pois ameaçam produtos já consagrados. Eu mesmo
conheci um professor universitário que já nos anos 80 havia desenvolvido um
motor à água. Resultado: foi demitido e teve seu projeto abortado pela
Universidade, que por sua vez recebeu uma enorme soma em doação da parte de
certa empresa petrolífera. No sistema capitalista, tudo é movido pela ânsia do
lucro.
Governos
pautados nesta ideologia estão construindo sobre areia movediça. Bem fariam em
dar ouvidos à advertência bíblica: “Ai daquele que edifica a sua casa com iniquidade,
e os seus aposentos com injustiça; que se serve do trabalho do seu próximo sem remunerá-lo,
e não lhe dá o salário.” Jeremias 22:13
Tragicamente,
esta ideologia demoníaca tem encontrado amparo no seio da igreja evangélica. A
teologia da prosperidade é sua filha caçula. Sua mensagem, resultado da mistura
de um gota de Evangelho com uma caixa d’água de discurso ideológico, tem sido
responsável por tornar a igreja numa importante engrenagem do sistema,
incentivando a alienação.
Todas as
ideologias e seus respectivos sistemas estão fadados a desaparecer (1
Co.15:24-25; Hb.12:27-28). Por isso, perde tempo quem tenta conciliar a verdade
do Evangelho com qualquer uma delas. Bom seria se déssemos ouvidos a Paulo,
analisando tudo e retendo somente o que for bom. Nada de pacotes fechados!
Assim
como não podemos sacralizar qualquer que seja a ideologia, também não podemos
demonizá-la. Dos dois lados da trincheira ideológica há gente de bem, lutando
pela justiça e pela verdade. Quem gosta de rotular os outros de maneira
tendenciosa e preconceituosa está à serviço da discórdia, disseminando o ódio
entre irmãos. Posso condenar uma linha de pensamento, mas isso não me dá o
direito de sentenciar ou fomentar suspeitas sobre pessoas que pensem diferente
de mim.
Cristãos
que cerraram fileiras com a ala direita certamente o fizeram por identificarem
naquela ideologia alguns elementos comuns ao Evangelho. O mesmo podemos falar
dos que cerraram fileiras com a esquerda. Ambas as ideologias têm coisas em
comum com a proposta do Evangelho, como também têm disparates que não podem ser
ignorados. Há santos e pecadores de ambos os lados. Não sejamos tão severos...
Nem tão ingênuos...
Em vez de
lutarmos em nome de uma ou de outra, digladiando-nos uns com os outros, que tal
lutarmos pela liberdade e pela justiça preconizadas na mensagem do Reino de
Deus?